alone, together
Em Vergonha (Skammen, 1968), Bergman não quer contar uma história. Não há um enredo linear que possa ser contado em uma sucessão de fatos, apesar de o roteiro ser cronologicamente linear. O que quer ser mostrado ali é um estado de espírito. O próprio título do filme já resume, em uma palavra, a atmosfera nebulosa cuja tonalidade é representada na tela, num esforço metafórico que não acaba antes da última cena, transcrita aí embaixo.
Náusea. Vergonha e náusea, mais cólicas abdominais. Incomunicabilidade. Os pés rastejam sobre o chão, e o ventre que sustentam é infértil. Esterilidade, a falta de palavras na qual nadam sem rumo um homem e uma mulher. Jan, Eva e todo resto da humanidade. O barulho da guerra ensurdece a ponto de não mais ser possível agüentar. O braço do violino se quebra, não há mais o que fazer a não ser partir. Parte-se com dinheiro roubado de outro, e a culpa nada no mar junto aos corpos que bóiam à deriva, mortos. O final está em aberto, o filme acaba com a partida.
(no barco, Liv Ullmann, a deusa, em Eva) Eu tive um sonho... Estava andando por uma rua muito bonita. De um lado, havia casas brancas com altos arcos e pilastras. Do outro lado, havia um parque sombrio. E, debaixo das árvores, perto da rua, havia um lago de água verde-escura. Então, encontrei um grande muro, todo coberto de rosas. Veio um avião e incendiou as rosas. Mas não foi tão ruim, porque era muito bonito. Olhei o reflexo na água e vi as rosas queimando. Tinha uma criança em meus braços. Era nossa filha. Ela se agarrou em mim, e eu senti seus lábios tocarem minha bochecha. E o tempo todo eu sabia que deveria me lembrar de algo; algo que alguém tinha dito, mas eu tinha esquecido o que era. (fecha os olhos)