ars et sanguis

Gozo que suga todo sangue até ser alcançado. Arte não é remédio; não é mãe; talvez sirva de pai. Deslocamento, movimento, num tempo finito; um tempo especial para cada obra em especial. Completude deslizante, chão ausente onde eu escorrego. Escorrega e cai, e sobe mais alto cada vez que cai; o dançarino contemporâneo deve saber como aproveitar a queda, a força do contato com o chão, para subir e correr na fluidez do espaço. Sem dor não há produção. Ser uma ferida ambulante, isso é preferível a ser uma nódoa estática. Sangrar pelo caminho, deixar marcas e fluidos corpóreos por onde se esteve, mostrá-los televisionados a cores para os recantos mais lúgubres, onde, definitivamente, nunca se esteve. Fazer sexo e ir bem além da penetração física, ser homem, mulher, ativo e passivo ao mesmo tempo e por todos os orifícios possíveis e, se duvidar, pelos impossíveis. Esburacar e deixar-se ser esburacado, revelar-se em desejo e necessidade e demanda para aqueles que queiram ouvir, ou para aqueles que simplesmente estão ouvindo.

Deus está morto. Onde morarão as medidas de valor, a partir de agora? Onde moraram por todo esse tempo de comédia burra e sensibilidade embotada? Em um corpo aberto onde havia uma boca que dizia-se fechada. Por lá passaram todas as sortes de pesadelos e maravilhas paradisíacas, como cartões de crédito deixam os seus tostões magneticamente, numa das vinte mágicas cotidianas mais cretinas. Sou portador do ceticismo mais religioso, o relativismo mais absoluto; o ateísmo mais crédulo, a verossimilhança mais fictícia. Poesia me dá fome. Dança contemporânea me dá sede.

Prosseguir, prosseguir, prosseguir. Dar um passo para fora da repetição. Estar lá onde o vento uiva, e estar aqui, com as pernas para o ar, andando com a força dos ombros. Elasticidade corporal, alongamento a dois. A três, a quatro, a um milhão novecentos e trinta e seis mil duzentos e setenta e cinco. Fuga veloz do eu-esse-mesmo a trocar figurinhas repetidas com um outro-aquele-mesmo. Devires que podem respirar e inspirar e expirar e exalar os seus odores para todas direções.