dancer in the dark

Um estupro. Nisso se constitui qualquer tentativa de falar sobre dança contemporânea. Encerrar movimentos em palavras, trancá-los em caixas nas quais eles não cabem. A dança é uma linguagem própria, suas palavras são os movimentos de um corpo. Já o corpo usado nessa empreitada expressiva ímpar é um corpo que, antes de cristalizar-se em carne física e inerte, dispõe-se a criar em volta de si e para fora de si um outro corpo; um corpo de signos que escraviza os membros na produção de um devir artístico, sempre singular.

Falando sobre dança, passa-se essa carne, intangível em sua volatilidade, por um moedor lingüístico que a estraçalha. Revelam-se sangues que nunca seriam seus não fosse a transformação operada aí. Dessa forma, um trabalho de conceitualização pode ter poderes modificadores sobre o aprendizado de dança, assim como sobre a criação coreográfica. Conceitos podem vestir o ato de dançar, e daí a importância de se falar sobre ele. O que difere radicalmente de forçar correspondências diretas entre unidades coreográficas e palavras. Afinal, como definir uma unidade coreográfica? Onde acaba um movimento e começa um outro?

Merce Cunningham (eua, 1919) ressalta esse aspecto em seu trabalho. Suas criações não seguem uma história, não contam um enredo; sua proposta é a de que o que é dançado são os movimentos em si, completos em uma significação contida na continuidade e no conjunto dos gestos. Uma coreografia de Cunningham não quer fechar-se em um sentido; não quer impor o seu entendimento àqueles que assistem. Como uma dança sem música, onde todos os sons podem ser ouvidos.

O sentido só completa-se quando a imagem cênica cai por sobre o lodo de expectativas de um espectador ao qual é reservado o lugar de estranhamento constante perante aquilo que é visto. Para que isso aconteça, o bailarino precisa passar por um trabalho técnico suficiente para que sejam rompidas as barreiras motoras que subordinam os seus atos à previsibilidade cotidiana. Isso vai na direção de levar a intenção gestual a uma dimensão principalmente estética. Se no cotidiano cada movimento tem uma utilidade prática e direta, no palco o gesto pode ser completamente inútil, virtualizando-se em um significado que passa longe de uma racionalidade burra e avessa à mais elementar das propostas da arte, que é a de criar novas paisagens e novas linguagens para transmiti-las.

Esse trabalho técnico reflete-se perceptivelmente naquele corpo que aceita a sua proposta. Os músculos ganham uma nova configuração, graças à firmeza perseguida na intenção do gesto; por mais que sejam abominados os halteres, o fato de se imaginar o ar circundante como dotado de massa exige que os membros sejam cobrados em nível semelhante. A porção baixa do abdome e as costas fortalecem-se incrivelmente na busca pelo ideal estético de um movimento dirigido a partir do centro ou em direção a ele. Mas a diferença mais gritante, e a mais importante também, está no ganho de uma consciência corporal resultante de técnica que privilegia a organicidade do movimento. O corpo concebe-se como uma força que se move em uma direção.