the scientist

Doei meu corpo à dança contemporânea. São dela os movimentos dos meus braços, o caminhar das minhas pernas, a soltura da minha virilha, o espiral dos meus músculos. Tenho com o chão uma relação de escravidão consentida, podendo oscilar a uma libertação cada vez mais nítida de suas garras gravitacionais. O contato direto com o solo espreme a carne. Dói. O raspar dos pés na aspereza dura das tábuas cria bolhas, rompe a pele. Sou um corpo de onde brotam outros corpos, seres de outro planeta, criaturas de estéticas pouco convencionais.

Não danço conforme a música. Os compassos não existem até que sejam criados, e saber disso é o verdadeiro dom artístico. Os que esperam que um exame de dna confirme sua aptidão às artes perdem tempo. Vamos, apressai-vos, o que esperáveis ouvir eu acabo de vo-lo dizer.

Cada pedaço do meu corpo é uma obra de arte. Escrevo prosa poética porque a escrita, como a fala, é poética por natureza. Do meu ventre nascem crianças, camelos e leões, sob a inodora despudorada aparência de cerejas pretas, guardanapos e algodão-doce.

A ciência merece no máximo a veracidade de uma dança dançada por milhões de sujeitos; é um sujeito só, sujeito a severos e vários questionamentos. Eu experimentei os seus passos, cortei a cabeça de dezenas de ratinhos num laboratório de neuroquímica. Fiz isso por aproximadamente um ano. Finalmente, cansei da repetição de dois ou três movimentos. O sangue que saía do pescoço dos roedores nunca foi suficiente. O alcance dos respingos era demasiado curto, os passos eram sempre circulares, e não levavam a lugares diferentes. Mas o mais triste era, ao chegar a uma conclusão, sangue do meu sangue, do meu trabalho de inserir cânulas em cérebros expostos, eu tinha que chamar isso de descoberta. Como se as frases que eu havia dito já estivessem todas lá, escritas, como se as luzes que eu havia visto estivessem de fato acesas em algum lugar, e como se esse lugar não fosse o território úmido do espaço entre meus olhos e o que eles vêem.

Em contemporânea, é impossível dar um nome para cada movimento, como acontece no ballet clássico, pelo simples fato de as possibilidades de movimentos serem infinitas. Não há duas ou três escolas a serem seguidas como cópias de um ideal religioso e limitador. Cada coreógrafo cria a sua escola, a sua linguagem, e a matéria-prima de que dispõe são os corpos que se oferecem para aprender a língua que irá ensinar. Estão decretados o fim da previsibilidade e o início da mais profunda revolução: a dos corpos que metamorfoseiam-se em movimentos.