the waitress

Corpo, voz e ação. É o nome de um curso de extensão existente no DAD (Departamento de Artes Dramáticas, do IA da UFRGS) desde umas duas semanas atrás. Um grupo de vinte pessoas oferecido ao atravessamento de uma técnica cênica ocidental. Exploração máxima do contato com o outro. No cartaz, um corpo nu, sendo que no lugar da cabeça tem só uma boca gigante. Há-de se passar antes pelas três metamorfoses, para só depois adentrar aquele piso de tábuas paralelas.

(Agora falarei a vocês sobre as três metamorfoses do espírito: como o espírito torna-se camelo, o camelo transforma-se em leão, e o leão, finalmente, em criança.
Existem muitas coisas difíceis para o espírito, aquele espírito reverente que deseja suportar tudo: mas o difícil e o mais difícil são as provas que a força desse espírito deseja. O que há de mais difícil? pergunta o espírito que deseja suportar tudo, e se ajoelha como um camelo que espera ser bem carregado. O que é o mais difícil, ó heróis—pede o espírito ansioso por suportar tudo—para que eu possa tomá-lo sobre meus ombros e exultar em minha força?
Será humilhar-se a si mesmo para mortificar o próprio orgulho? Deixar brilhar nossa loucura para zombar de nossa sensatez?
Ou será abandonar nossa causa bem na hora de celebrar a vitória? Escalar altos montes para tentar o Tentador?
Ou será sustentar-nos com as bolotas e as ervas do conhecimento e, pelo bem da verdade, sofrer fome na própria alma?
Ou será estarmos doentes e despedirmos nossos benfeitores e fazermos amizade com os surdos, que nunca ouvem o que desejamos?
Ou será submergir na água imunda, porque essa é a água da verdade, sem esquivar-se ao contato com as rãs frias e os sapos quentes?
Ou será amar os que nos desprezam e estendermos as mãos aos fantasmas que querem nos assustar?
O espírito que deseja suportar tudo toma sobre si mesmo todas essas coisas difíceis: então, semelhante ao camelo carregado que se apressa em direção ao deserto, também ele corre para seu deserto.
E lá, nessa solidão extrema, produz-se a segunda metamorfose: o espírito torna-se leão, quer conquistar a liberdade e ser senhor em seu próprio deserto. Aqui ele busca seu último senhor, quer lutar com ele e seu último deus, quer lutar pela vitória final com o grande dragão.
Quem é esse grande dragão que o espírito se recusa a chamar de Deus e de Senhor? ‘Tu deves’, assim se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz ‘Eu quero!’ Barrando o seu caminho está postado o ‘Tu deves’, brilhando como ouro, coberto de escamas fulgurantes, e em cada uma dessas escamas reluz, em letras douradas, ‘Tu deves!’
Valores milenares brilham nessas escamas e assim fala o mais poderoso dos dragões: "Em mim brilha o valor de todas as coisas. Todos os valores já foram criados e eu sou o todo dos valores criados. Na verdade, ‘Eu quero’ não deve mais existir daqui em diante." Assim falou o dragão.
Meus irmãos, para que o espírito precisa ser leão? Não basta a besta de carga, resignada e respeitosa?
Criar novos valores - disso nem mesmo o leão é capaz - mas conquistar sua própria liberdade para criar o novo - esse é o poder do leão. Para conquistar sua própria liberdade, o direito sagrado de dizer ‘Não’ até diante do dever, para isso, meus irmãos, é preciso ser leão.
Conquistar o direito de criar valores novos é a mais terrível empreitada para um espírito resignado e respeitoso. Certamente ele veria em tal ato uma façanha digna de um salteador e de um animal de rapina. Agora, aquele que antes amava o ‘Tu deves’ como o que existe de mais sagrado há de perceber a ilusão e o arbítrio até mesmo no que há de mais sagrado no mundo e conquistará assim, após uma grande luta, o direito à liberdade à custa do seu amor. É necessário um leão para tão grande violência.
Mas dizei-me, irmãos: que pode a criança fazer onde o próprio leão foi incapaz? Porque o altivo leão deve transformar-se numa criança?
A criança é inocência, esquecimento, novo começar, jogo, roda que gira sobre si mesma, movimento que começa, um sagrado ‘Sim’. Para a brincadeira que é a criação, meus irmãos, é necessário um ‘Sim’ sagrado: o espírito agora quer sua própria vontade, e aquele que foi perdido para o mundo conquista agora o seu próprio mundo.
Assim falei a vocês das três metamorfoses do espírito: como o espírito se transformou num camelo, o camelo em leão e o leão, finalmente, numa criança.
Assim falou Zaratustra. E nessa época ele morava na cidade chamada Vaca Multicor. Friedrich Nietzsche)

Fio de prumo, pés paralelos en dedans, nunca respirar como um cachorro, inspirar. E expirar. Ali aprende-se a abrir buracos nas veias com as unhas sujas de peles estranhas, não-suas. O sangue vai escorrendo aos poucos. De consistência cremosa, um vermelho quase preto, ele pesa e vai deslizando sobre a pele. A palavra enrosca-se nas pernas dos cinco sentidos convencionais, e sobem-se degraus em direção às nuvens. O sangue, fazendo um barulho, cai e no fim é pisado por pés prontamente preparados à próxima transferência de peso.

Só exercícios práticos, porque diz-se que teatro só se aprende fazendo. Ou melhor, na verdade há uma minúscula parte teórica: um diário, cada dia escrito por uma criatura. Semana passada eu me encarreguei do texto. O resultado, chazam, está aí embaixo.

[Quarta-feira, vinte e um de maio. Sete e quarenta da noite quente de um outono. Após atravessar correndo o corredor do DAD e trocar de roupa apressadamente, entro na sala ao fundo, onde todos já estão em círculo, produzindo as reminiscências da aula passada. Tomo um lugar no círculo. Por mais que não queira fazer barulho e alardear o meu atraso, ainda cumprimento algumas pessoas. Ainda é impossível resistir, ainda recém cheguei; ainda trago resquícios do meu dia que pouco a pouco irão se diluir na concentração necessária ao trabalho de investigação a que nos propusemos todos, ao entrar nesse curso. Aqui dentro, a sensação é a de que o resto do dia é apenas o resto do dia; problemas, preocupações, lutos e galinhas mortas são deixados para trás, em nome de um bem maior a que todos aqui se propoem: produzir arte com o próprio corpo.

Devagar, somos acordados pela voz de uma Joana que manda que mexamos esse corpo, que movimentemos as pernas em direção a algum lugar. Não basta caminhar, tem que haver intenção na caminhada. Quase sem querer, aquecemos o corpo no ritmo de um movimento; aquecimento que vai além da simples flexibilização dos tendões: a partir de agora, é o sangue que nos percorre de uma maneira diferente, fazendo caminhos inusitados, pulsando anarquicamente nas têmporas e inundando de intenção artística as nossas superfícies. Mas precisamos de contato, temos um vazio que só pode ser preenchido com o toque. E somos convocados a tocar o ombro direito das outras pessoas, suas panturrilhas, suas nádegas, num jogo de perseguições que acaba por romper mais algumas barreiras existentes entre nossos corpos.

De repente, há balões flutuando sobre nós, e se espera que não os deixemos encostar no chão. Espera-se, aliás, um pouco mais. Que aprendamos a linguagem do movimento leve e lento dessas bolas de ar, que nossos movimentos enfim nos transformem também em bolas de ar, que viremos extensões dos balões lançados para o companheiro. Com esse, acaba por estabelecer-se uma ligação comunicativa através do olhar; Camila dizia com os olhos a hora exata de passar o balão dos seus domínios para os meus. E a língua dos balões é aprendida a cada toque. Devagar nos vamos habituando a tocá-los com a suavidade necessária, até que estejamos plenamente fundidos a eles, num envolvimento que compromete todas as partes do corpo.

É hora de trocar os balões por outros objetos. Segurando-os com partes do corpo diferentes das mãos, percebemos o seu peso, a sua forma, o seu cheiro, os seus contornos. Junta-se a essa a percepção do próprio corpo que percebe, suas partes, seus limites e suas capacidades. Na próxima proposta, a aula atinge o seu ápice: somos convidados a explorar outras possibilidades de relação com os objetos que estão às nossas mãos. Imaginar para eles funções para as quais não foram originalmente designados. Tubos de fermento viram granadas, tampas viram brincos. Um exercício poético, no sentido de que também a poesia propõe-se a criar outras maneiras de ver o cotidiano, brincando com o significado das palavras que estão à nossa disposição. Aos poucos, e mais subliminarmente do que a nossa razão possa entender, vai-nos sendo transmitida a essência da arte cênica, um trabalho que supera e transforma a percepção do corpo entregue a ele.]



Note: tentei usar a linguagem para seduzir as pessoas do grupo. Sou um crápula. Ok, sou mau, mas que que se pode fazer? Partes do meu corpo (eu acabei todos os parágrafos com essa palavra) saltam quando faço movimentos bruscos, falanges estalam e desprendem-se com um barulho de coisa que rasga. Não tenho culpa, eu juro. Mas a partir de agora prometo me comportar mais. Se alguém está apaixonado por mim, não perca tempo ficando em dúvida. Pode me contar. Claro, isso se você não for uma bruxa monogâmica pregadora do progresso ordenado capitalista.